Hoje faz seis meses que retornei
ao Brasil no voo mais difícil da minha vida. Estava a bordo com o meu irmão,
muito doente, que tinha ido me visitar na África do Sul. Ele havia passado mal
e foi hospitalizado em Strand. Forcei a saída dele do hospital e assumi todos
os riscos da viagem, não havia nenhuma garantia que ele chegaria vivo a São
Paulo.
No início de 2014 resolvi mudar a
minha vida radicalmente porque estava insatisfeita com a minha rotina. Pedi demissão do meu trabalho no primeiro dia útil do ano. Eu trabalhava há
mais de nove anos no Consulado Geral da África do Sul em São Paulo e já não
tinha o devido entusiasmo para desempenhar as minhas funções diárias. Era hora
de mudar. Protelei essa decisão por muito tempo porque tinha estabilidade no
emprego e o prazer de poder ir e voltar para o trabalho andando, uma caminhada
de 25 minutos. Considerando as dimensões de São Paulo isso é um enorme
privilégio.
Inicialmente pensava em organizar
uma viagem de volta ao mundo seguindo sempre a rota do Sol. Queria sair do
Brasil no verão e passar pelo menos um ano viajando da maneira mais simples
possível, levando comigo apenas o meu equipamento fotográfico, um laptop, uma
dúzia de peças de roupas e um par tênis nos pés.
Eu ainda não tinha começado a
esquematizar a minha viagem quando fui convidada para trabalhar numa Degustação
de Vinhos Sul Africanos para jornalistas e empresários do setor. O trabalho
envolvia também a tradução do portfólio de dez vinícolas que participariam do
evento. Como eu já havia feito algumas traduções sobre vinhos anteriormente
aceitei o convite. As traduções eram extremamente técnicas, um trabalho árduo, mas
também interessante porque tive que fazer inúmeras pesquisas para me interar do
assunto. Aprendi bastante e também desenvolvi um carinho especial pela
viticultura e enologia.
Ao término do evento fui consultada
sobre a possibilidade de trabalhar na África do Sul. A minha função principal
seria atuar como interprete (português-inglês) em degustações, eventos,
reuniões e também acompanhar executivos brasileiros que estivessem visitando
vinícolas da região do Cabo.
A ideia de morar e trabalhar no
continente Africano me pareceu tentadora. Decidi abraçar a oportunidade e adiar
uma vez mais o meu projeto inicial de dar a volta ao mundo. Para mudar de país
é necessário tomar uma série de providencias, e no meu caso a primeira foi
anunciar que o meu apartamento estava disponível para locação. Resolvi alugar do
jeitinho que estava, com todos os eletrodomésticos, móveis, utensílios,
cortinas, enfim, tudo o que eu tinha exceto alguns itens de uso pessoal. O
processo de locação demorou cerca de quatro meses.
Neste ínterim fui convidada para
trabalhar seis semanas no Consulado Geral Britânico. O meu trabalho temporário,
durante a Copa do Mundo do Brasil, foi auxiliar na organização da festa de
comemoração do aniversário da Sua Majestade a Rainha Elizabeth II aqui em São
Paulo. A festa, um evento grandioso, contou com a participação do Príncipe
Harry, representando a Família Real Britânica e inúmeros convidados ilustres.
Sem dúvida, uma experiência ímpar que selou com muita elegância os meus
trabalhos no mundo da diplomacia.
Strand, a cidade que morei na África do Sul
Comecei então a preparar a documentação
para o meu visto de trabalho para a África do Sul. Como a lista de exigências e
os trâmites para a obtenção de todos os certificados e documentos com tradução
juramentada demoraria alguns meses para ficarem prontos, foi preciso rever os
meus planos outra vez. Decidi então ir para a África do Sul primeiramente como
turista, passaria três meses em Strand, a cidade que iria morar, e retornaria
ao Brasil para dar prosseguimento ao meu visto de trabalho.
Um mês antes de eu embarcar para
a África do Sul, os meus pais, que moram em Santa Catarina, sofreram um assalto
pavoroso com todo o requinte possível da crueldade humana. Os bandidos
invadiram a casa deles e os torturam muito antes de roubar o máximo que
puderam. Milagrosamente eles
sobreviveram á brutalidade dos golpes sem nenhuma fratura grave. Uma semana
após o assalto, os ferimentos físicos deles já estavam parcialmente
cicatrizados e os 17 pontos que meu pai teve na cabeça já haviam sido
removidos. Eles viajaram para São Paulo e passaram um mês aqui comigo e com o
meu irmão. Eu os levei para várias cidades vizinhas, tentei amenizar os
horrores que eles tinham vivido fazendo programas culturais. Foram dias
extremamente difíceis considerando a situação que eles se encontravam e também
porque em breve eu iria embora do país.
Beach Road, a avenida que eu morava em Strand
Eu morava no primeiro prédio a esquerda, no terceiro andar
Em novembro embarquei para a
África do Sul tendo como destino Strand, uma cidadezinha banhada pelo mar e
abraçada pelas montanhas, na rota dos vinhedos, distante 50 km da Cidade do
Cabo. Antes de eu partir já tinha alugado lá um apartamento mobiliado, de
frente para o mar, o qual pertencia ao marido de uma amiga minha sul-africana.
Era um apartamento extremamente agradável e bonito. Sempre sonhei em morar na
praia e em breve teria o mar aos meus pés todos os dias. É claro que a
empolgação inicial com a mudança estava diminuída em função de tantos problemas
na minha família, mas apesar de tudo eu sabia, no meu íntimo, que precisava
partir.
Durante a longa viagem até a
Cidade do Cabo aproveitei para descansar e desfrutar do conforto da Business
Class da South African Airways que, gentilmente, me presenteou com a mudança da
categoria da minha passagem de econômica para executiva no dia do embarque.
Ao chegar ao aeroporto da Cidade
do Cabo a minha amiga Alba me aguardava sorridente e de braços abertos. Há mais
de dez anos ela me convidada para ir para a África do Sul, mas eu sempre
viajava para outros destinos nas minhas férias. Finalmente estava lá!
Somerset West, encravada na montanha a 4 km de Strand
A rodovia do aeroporto até Strand
é cinematográfica, com muitas montanhas, vinhedos e flores pelo caminho. Não
demorou muito e avistamos a pequenina Strand.
Nunca vou esquecer a minha
alegria ao entrar naquele apartamento com a vista maravilhosa do mar.
Da minha janela eu via o Cabo da
Boa Esperança e em dias claros as luzes da Cidade do Cabo. Todos os dias, era
agraciada com a beleza do entardecer e o espetáculo do pôr do sol que afagava a
minha alma e me inundava de alegria.
No primeiro mês em Strand visitei
várias vinícolas e conheci lugares fantásticos apresentados pela minha amiga
Alba e seus amigos. Eu estava cercada por pessoas que se esforçavam para me
mostrar o melhor da África do Sul e me ajudar a superar meus problemas
familiares.
Venta tanto em Strand que as árvores são tortas
Strand é uma cidadezinha que
guarda inúmeros traços deixados pelos ingleses e holandeses. Muitas vezes eu
tinha a sensação que estava morando na Europa e não na África do Sul. Em Strand
os proprietários da maioria dos imóveis são europeus aposentados que trocam o
frio do inverno do velho mundo pelos dias ensolarados e quentes da África do
Sul. Na cidade praticamente não há vida noturna, os poucos restaurantes fecham
cedo e as pessoas raramente andam a pé pelas ruas quase desertas. Acredito que
uma das razões da falta de pedestres é que em função da sua posição geográfica,
a cidade sempre é atingida por ventanias. É muito raro não ventar em Strand,
quase diariamente os ventos chegam a 70 km/h. Para mim era uma experiência nova
ter que lutar contra o vento para atravessar uma rua. No começo eu achava
divertido, mas aos poucos fui entendendo o porquê de muitas vezes eu ser a
única pessoa andando pelas ruas e quase sendo carregada pelos ventos.
O vento contrário as ondas, um espetáculo único
Na manhã do dia 10 de dezembro de
2014, eu estava em casa. Como o vento trazia muita areia para dentro do
apartamento resolvi aspirar o tapete da sala. O aspirador fazia um
barulho quase ensurdecedor. Imagino que estava aspirando durante uns 15 minutos
quando faltou luz. Durante o período que morei em Strand faltava luz quase
todos os sábados de manhã e ás vezes durante a semana. Como eu não sabia quanto
tempo ficaria sem luz, resolvi ir para a praia, sem energia não teria nem como cozinhar,
pois o fogão era elétrico.
Eu morava no terceiro andar e o
prédio tinha apenas seis andares. Ao chegar ao térreo o zelador gritou para eu sair
imediatamente. Ele disse que havia bandidos no prédio e a polícia estava
procurando por eles. Saí correndo e logo vi a viatura da polícia em frente ao
prédio. Não havia tumulto, ou melhor, não tinha ninguém na calçada e talvez uma
dúzia de pessoas na praia. Coloquei a
minha toalha na areia branca, sentei-me diante do mar e comecei a meditar para
me acalmar. Depois agradeci a Deus por não ter acontecido nada comigo. Eu só
tinha levado a toalha e uma saída de banho, estava descalça e não tinha o que
fazer a não ser esperar ter condições para voltar para casa. Demorou quase uma
hora até que a polícia foi embora e só então voltei para o prédio. O zelador me
contou que os bandidos tinham tentado arrombar com uma marreta o apartamento do
segundo andar, ou seja, embaixo do apartamento que eu morava. Naquele instante
a vizinha que estava em casa ouviu as marretadas na porta do apartamento que
estava vazio e chamou a polícia. Como ela estava muito assustada e gritava
bastante, os bandidos perceberam e fugiram antes da polícia chegar.
Surpreendentemente isso tudo
aconteceu exatamente enquanto eu estava aspirando o tapete da minha sala. O
barulho estridente do aspirador me salvou. Não ouvi nem os gritos da vizinha
nem as marretadas dos ladrões. Quando vi a porta de ferro arrebentada e a porta
do apartamento totalmente danificada foi difícil acreditar que eu não tinha
ouvido absolutamente nada. Tenho certeza que o meu anjo da guarda está sempre
por perto e bem alerta.
Não contei para ninguém da minha família nem
para os meus amigos do Brasil sobre o assalto, queria evitar que ficassem
preocupados comigo. Após o incidente o policiamento na Avenida da Praia começou
a ser mais frequente.
No dia 18 de dezembro de 2014, o
meu único irmão, foi me visitar na África do Sul. Quando o vi no aeroporto da
Cidade do Cabo levei um susto, estava com a aparência de uma pessoa muito
doente, difícil de entender como ele tinha viajado naquelas condições.
Os primeiros 10 dias ele passou
na cama, estava stressado, abatido, tossia sem parar, quase não comia e se
recusava ir ao médico. Passei a me dedicar exclusivamente a ele e, apesar dos
meus esforços percebia que ele não estava melhorando. Eu tinha feito amizade
com a Hanli, uma médica sul africana que conheceu o meu irmão e disse que ele
precisava fazer alguns exames para que ela pudesse ajudá-lo. Como ele não
aceitava fazer os exames ela prescreveu apenas algumas vitaminas e xarope para
a tosse. Após alguns dias ele apresentou uma leve melhora e teve condições de
fazer o safári que eu já havia organizado. http://audmara.blogspot.com.br/2015/01/caminhando-com-girafas-num-safari.html
O meu irmão passou 35 dias
comigo na África do Sul. Nós iríamos viajar para cidades próximas antes de ele
retornar ao Brasil, mas em função das condições de saúde dele fomos apenas duas
vezes para a Cidade do Cabo.
Na manhã do dia 21 de janeiro de
2015 ele começou a passar muito mal. Minha amiga Alba chegou ao apartamento
exatamente naquele momento para me entregar algumas garrafas de vinho. Ao ver o
estado que ele se encontrava ela ligou para o médico dela e avisou que em 15
minutos estaríamos no consultório dele. Meu irmão não teve condições de
continuar se negando a receber ajuda.
Assim que foi atendido o médico
disse que ele precisava ser internado imediatamente, estava desidratado e com
os batimentos cardíacos baixíssimos. A Alba nos levou para uma clínica próxima
onde uma equipe médica já nos aguardava. Fiquei sozinha com o meu irmão lá
porque ela tinha compromissos inadiáveis em Stellenbosh e já tinha feito tudo o
que podia para nos ajudar.
Após o atendimento emergencial a
médica chefe da equipe que atendeu o meu irmão me chamou para conversar. Ela me
explicou que a situação dele era gravíssima e que ela não poderia prever quanto
tempo ele ficaria internado. Era preciso ter um diagnóstico confirmado para
iniciar o tratamento imediato. Ela já havia solicitado vários exames.
Eu estava perplexa, não conseguia
conter as lágrimas e precisava tomar uma decisão sem sequer saber as
consequências reais da mesma. Falei para a médica que eu iria retornar ao
Brasil no dia seguinte com o meu irmão e que o tratamento seria feito em São
Paulo. Lembro nitidamente do espanto dela e a insistência em repetir que o
quadro era grave e que ele corria o risco de não suportar o voo de volta. Só
faltou ela dizer que era uma loucura o que eu estava fazendo e que ela não iria
compactuar com aquilo. Pedi para que ela fizesse tudo o que fosse possível para
que ele aguentasse a longa viagem e, sem pestanejar, assumi todos os riscos.
Não poderia ligar para os meus pais e perguntar o que eu deveria fazer, meu
irmão estava em um estado deplorável e eu tinha que tomar uma decisão. Assinei
um termo de responsabilidade ausentado os médicos e a clínica de qualquer negligência
pela alta forçada dele e decidi que embarcaria de volta ao Brasil no dia
seguinte.
Assim que terminei a conversa com
a médica, encontrei ao lado do meu irmão a mãe da Hanli. A Alba havia avisado a
Hanli, mas como ela estava trabalhando numa cidade próxima, pediu para a mãe dela
ir para a clínica oferecer o seu apoio.
Passei algumas horas ao lado do
meu irmão que já apresentava uma pequena melhora embora os batimentos cardíacos
ainda estavam longe da normalidade. Eu tinha pouco tempo para organizar a viagem
de volta para o Brasil. Então resolvi deixá-lo sendo medicado e tomando soro no
pronto-socorro, e voltei para o meu apartamento com a Hanli assim que ela chegou a clínica para nos ajudar.
No caminho de volta para o
apartamento eu engolia o meu choro e a minha angústia... só repetia para mim
mesma: raciocínio lógico agora, você não pode errar, pense no que é prioridade.
Você vai conseguir... Parecia que estava vivendo um pesadelo sem fim e me
recusava a acreditar que teria que deixar a África do Sul com o meu irmão numa
situação tão delicada. Tantos sonhos, tantos planos, tudo ficaria para trás e,
quem sabe, um dia será retomado.
Minha primeira providência ao chegar
ao apartamento foi entrar em contato com a companhia aérea para mudar os nossos
voos. Tínhamos que voar da Cidade do Cabo até Johanesburgo e de lá pegar um voo
internacional para o Brasil. Liguei para a South African Airways e felizmente
havia lugares nos voos e consegui mudar as passagens rapidamente.
Entrei em contato com o empregador
do meu irmão e pedi para me encaminharem uma cópia da carteirinha do convênio
médico dele assim como a lista dos hospitais conveniados. Solicitei também que
providenciassem uma ambulância para nos levar do aeroporto de Guarulhos direto
para o hospital. Eu tive todo o apoio e solidariedade da D. Eliana que além de
atender imediatamente as minhas requisições, gentilmente, me informou que
enviaria o seu motorista para o aeroporto para me ajudar com as malas.
Entrei em contato com uma amiga em São Paulo
que conhecia a minha mãe. Pedi a ela para ligar para a mãe e pedir para ela viajar
para São Paulo imediatamente. Eu não podia ligar para a minha mãe porque com
certeza ela iria perceber o meu desespero. Eu estava distante quase 10.000 km
do Brasil, a vida do meu irmão estava por um fio e eu tinha decidido arriscar tudo
e enfrentar a longa viagem de volta com ele.
Assim que terminei de enviar os
emails a Hanli me levou de volta para a clínica. A alta forçada do meu irmão já
estava aprovada. Voltamos para o apartamento e ele continuou a ser medicado. Comecei
a preparar a comida sugerida pela médica e logo em seguida chegou a Denise, uma
senhora atriz que eu tinha feito amizade e havia convidado para jantar conosco.
Em meio ao caos, esqueci de cancelar o jantar, o que acabou sendo muito bom. http://audmara.blogspot.com.br/2014/12/trem-e-teatro.html.
Pedi para ela fazer companhia para o meu irmão no quarto enquanto eu preparava algo
para comermos.
No dia seguinte, 22 de janeiro de
2015, comecei a fazer as nossas malas de manhã cedo. Já era quase meio dia e eu
ainda não tinha recebido a confirmação com as mudanças dos voos da South
African Airways. Liguei para o Sr. Omar, ex Cônsul Geral da África do Sul no
Brasil com quem trabalhei e tenho amizade. Expliquei a situação e ele imediatamente
se ofereceu para me ajudar com o que fosse preciso. Eu também tinha ligado para
a minha amiga Alba pedindo ajuda, pois teríamos que embarcar em poucas horas e eu
ainda não tinha as novas passagens em mãos. Em alguns minutos após as minhas
ligações recebi as passagens.
Antes de deixarmos a África do
Sul recebi a confirmação que a mãe já estava em São Paulo na casa de uma amiga.
A ambulância estaria nos esperando no aeroporto, assim como o motorista que
levaria as nossas malas. Pedi para que ele levasse uma placa com o nosso
sobrenome escrito com letras garrafais porque estava tão transtornada que era
bem possível que eu não o visse no aeroporto.
Estava na hora de partir, minha
angústia aumentava a cada segundo. Eu só pensava na hora que o avião estivesse
aterrissando no Brasil e o meu irmão estivesse vivo.
A
Alba e o marido dela nos levaram de carro de Strand para o aeroporto da
Cidade do Cabo. Meu irmão foi no carro com o André e eu no carro da Alba, assim
podíamos conversar um pouco e ela tentar me acalmar. Eu pedia desculpas a ela
por ter entregado o apartamento do jeito que estava, até com comida na
geladeira e nos armários. Não tive tempo de fazer nada, sequer tinha dormido a
noite anterior.
Chegamos ao aeroporto e meu irmão
ficou sentado nas cadeiras do hall, estava tão debilitado que não tinha
condições de ficar na fila para fazer o check-in. Despachei as malas e foi um
alívio quando a atendente me entregou os cartões de embarque. Eu sabia que havia
o risco do meu irmão não ser aceito no voo porque estava muito abatido. Felizmente
a atendente não percebeu nada.
Solicitei uma cadeira de rodas e
um funcionário para me ajudar a levá-lo para o portão de embarque. Ao passar
pelo controle de passaporte e raio-x, o oficial me barrou e não queria me
deixar embarcar com as comidas líquidas e industrializadas que a médica havia
prescrito. Eu não podia insistir muito porque ele poderia notar que o meu irmão
não estava em condições de voar e nos impedir de embarcar. Então falei apenas
que o meu irmão estava com problemas de estômago e se eu não pudesse levar
aquela comida ele teria que ficar sem comer durante toda a viagem. Disse também
que entendia que ele estava cumprindo com o seu dever, que o achava
extremamente eficiente e que eu estava disposta a jogar fora toda a comida
mesmo sabendo o quanto isso faria mal para o meu irmão. O argumento foi
convincente e, sem perder a autoridade e a rigidez, o oficial me autorizou
embarcar com todos os potinhos de comida.
O voo da Cidade do Cabo para
Johanesburgo tinha duração de cerca de duas horas e foi tranquilo. Ao chegarmos
em Johanesburgo tivemos que aguardar todos os passageiros desembarcarem para
sairmos pelos fundos do avião. Havia uma espécie de furgão com elevador e duas
funcionárias com uma cadeira de rodas para acomodar o meu irmão e me ajudarem
com a bagagem de mão.
Estávamos no lado oposto do
terminal internacional e o furgão nos levou até um portão de entrada do
aeroporto. Os corredores eram intermináveis e não havia esteiras funcionando.
As funcionárias que estavam nos auxiliando tinham sido contratadas recentemente
e se perderam várias vezes dentro do aeroporto. A moça que empurrava a cadeira
de rodas do meu irmão era jovem, estava visivelmente empolgada com o trabalho
dela e saía em disparada com a cadeira de rodas como se estivesse disputando
uma vaga na Fórmula 1. Eu não tinha forças para correr atrás dela, pedia para
ela diminuir a velocidade porque tínhamos tempo suficiente para chegar ao
portão de embarque. A menina sorria, pedia desculpas e sem perceber começava
outra vez a correria. E assim, eu ofegante e o meu irmão se divertindo com a
brincadeira, chegamos ao portão de embarque. Acredito que, pelo menos, nós
andamos e corremos uns três quilômetros dentro daquele aeroporto.
Antes de me despedir das meninas procurei na
minha bolsa algo para presenteá-las. Sempre que viajo para o exterior levo
comigo lembrancinhas do Brasil para dar para as pessoas que encontro e que me
ajudam de alguma forma. Achei alguns chocolates “sonho de valsa” na minha
bagagem e, após traduzir o nome, dei para as meninas que ficaram muito
agradecidas. Foi um momento de descontração e elas ficaram mais alguns minutos
conosco enquanto comiam os bombons.
Teríamos que esperar quase três
horas para embarcar de Johanesburgo para São Paulo. Sentada ao lado do meu
irmão eu me esforçava para não demonstrar a minha angústia e rezava mentalmente
para que tudo desse certo.
Finalmente chegou a hora do
embarque e o voo não estava lotado. Consegui bloquear quatro poltronas para que
o meu irmão viajasse deitado. Durante as quase nove horas de voo ele conseguiu
dormir e eu, aflita, ficava checando o tempo inteiro se ele estava respirando.
As horas se transformaram em dias, eu fazia minhas preces e chorava
copiosamente.
Quando faltava cerca de uma hora
para chegarmos a São Paulo o meu irmão começou a passar mal. Eu sabia que o
efeito dos remédios para ele aguentar a viagem estava acabando. Ele tinha que
tomar uma dose que a médica havia me dado no hospital imediatamente. Preparei o
remédio e insisti de todas as formas para ele tomar, mas ele estava muito
irritado e não quis tomar de jeito nenhum. Nunca me senti tão incapaz. Lembro
que fui para o banheiro e desabei em lágrimas. Devo ter chorado tão alto que ao
sair do banheiro um comissário de bordo me aguardava ao lado da porta para
saber se eu precisava de ajuda. Eu nem conseguia falar...
Aterrissamos no aeroporto de
Guarulhos um pouco antes do horário previsto. Meu irmão foi levado numa cadeira
de rodas por um funcionário da South African Airways enquanto eu cuidava das
malas. Ao passarmos pela Polícia Federal o agente solicitou que nos
encaminhássemos para a vistoria de bagagem. Era só o que faltava naquele
momento eu ter que abrir as malas. Felizmente após passar pelo raio-x a bagagem
foi liberada sem ter sido vistoriada manualmente.
Meu irmão não tinha noção da
situação que se encontrava, mas começou a notar a minha aflição ao chegarmos ao
saguão do aeroporto. Ele não entendia o porquê de eu estar tão agitada e queria
saber se iríamos para casa de táxi ou de ônibus. Pedi o telefone emprestado do
funcionário da South African Airways e me afastei para ligar para o motorista
Fernando e confirmar o local que ele e a ambulância estavam nos esperando. Só
quando chegamos do lado de fora do aeroporto falei que não iríamos para casa,
mas sim direto para o hospital. Ele ficou furioso comigo, disse que aquilo tudo
era uma bobagem e pediu desculpas para o Fernando pelos transtornos que eu
havia causado. Enfim, ainda reclamando muito foi colocado dentro da ambulância.
Entreguei as malas para o Fernando e segui com ele na ambulância para o
hospital. No caminho, um pouco mais calmo, ele me perguntou se eu tinha feito
mais algum absurdo. Disse que tinha pedido para a mãe vir para São Paulo e que
ela estaria nos esperando no hospital. Neste momento acho que ele se deu conta
que a situação era mesmo grave e chorou.
Tivemos sorte que o trânsito não
estava muito complicado e chegamos ao hospital em cerca de uma hora. Só
consegui respirar aliviada quando a ambulância estacionou e vi, pela janela, a
mãe se aproximando, com os olhos marejados, tentava sorrir para nos receber da
melhor forma possível.
Meu irmão foi internado
imediatamente e no início da noite transferido para o Hospital Alvorada que é
referencia em gastroenterologia. Ele apresentava
uma série de problemas decorrentes da anemia profunda e anorexia nervosa que
culminaram com outras doenças oportunistas. Estava terrivelmente debilitado e
passou 16 dias internados. Dois meses após a primeira internação ele passou mal
novamente e voltou a ser internado por mais três dias.
Durante a primeira internação eu
e mãe passávamos parte do dia arrumando e higienizando o apartamento do meu irmão
que precisava estar em condições de recebê-lo assim que ele tivesse alta. A mãe
fazia questão de passar todas as noites no hospital ao lado do filho, só me
deixou dormir uma noite lá com ele.
A excelente equipe médica do
Hospital Alvorada foi crucial para a recuperação e diagnóstico do meu irmão.
Fomos informados que a recuperação dele seria muito lenta e que ele teria que
ficar um ano afastado do trabalho.
Então minha vida de repente se
transformou numa luta obsessiva pela vida do meu irmão. Ele precisava ganhar
peso e se alimentar da melhor forma para conseguir suportar a grande dosagem de
remédios que tinha que ingerir diariamente. Assumi a responsabilidade de
preparar todas as refeições dele e a mãe me ajudava com as outras tarefas da
casa. Eu passava praticamente o dia inteiro cozinhando, fazia uma média de 12 a
15 pratos para cada refeição. Como o meu irmão sempre foi vegetariano, o
organismo dele estava muito fraco por nunca ter ingerido proteína animal. Eu
precisava convencê-lo a comer ovos, peixe, frango e carne vermelha que ele
jamais colocou na boca. Eu tentava fazer
“contrabando de carne” em todas as receitas que conhecia, pesquisava na
internet, pedia para amigos sugerirem receitas. As vezes as minhas investidas
davam certo, mas a quantidade era ínfima e sem proteína animal dificilmente a
anemia profunda seria vencida.
Com a ajuda da Dra. Fátima, uma
experiente nutricionista, aos poucos ela conseguiu convencê-lo a comer ovos e
peixe. Eu fazia todas as variações de receitas de peixe possível, mas ele não gostava
de nada. Era desesperador. Depois de inúmeras tentativas ele começou a comer pirarucu
e tilápia que normalmente eu fazia assado ou puxado na manteiga. Para não sentir
o gosto do peixe ele o mergulhava no creme de leite ou enchia de pimenta,
outras vezes colocava doce de leite no peixe. Eu ignorava as extravagâncias, pois
o importante era ele ingerir a proteína animal.
Eu sempre gostei de cozinhar, mas
nunca imaginei que um dia minha atividade principal seria pilotar um fogão. Transformei
a minha vida numa sucessão de “agoras”, não tinha tempo para pensar em nada a não
ser monitorar os remédios do meu irmão, as consultas, o que eu iria cozinhar
naquele dia. Muitas vezes não conseguia controlar meus sentimentos e chorava
enquanto descascava os legumes. Eu precisava encontrar um jeito de tornar interessante
a minha rotina, então me esforçava para que os pratos ficassem saborosos,
apresentáveis e que despertassem o apetite do meu irmão.
Purê de batata com inhame, quinoa, chia, gergelim e linhaça
Salteado de legumes com alga wakane
Passei a fazer quase tudo em casa
para que a alimentação fosse o mais saudável possível. Até hoje faço o pão, a
massa para o nhoque, o macarrão, o sorvete, os biscoitos, bolos, enfim, praticamente
tudo o que comemos aqui sou eu quem faz.
Vol au vent com custard que eu trouxe da África do Sul
Passados seis meses desde que
retornamos ao Brasil o meu irmão apresenta uma excelente melhora. Já engordou
11 quilos e seguirá o tratamento até o final do ano, e eu cozinhando para ele.
Confesso que foram muitas as lições
e o aprendizado nestes seis meses. Cuidar de alguém doente e que se ama muito exige
uma entrega enorme. Muitas vezes me esqueci de mim mesma para ajudar o meu irmão.
Vivi os piores dias da minha vida nestes últimos meses, ás vezes era difícil
acreditar que ele iria vencer as doenças. Sempre agradeci a Deus por eu estar
em condições de ajudar e nunca deixei de aceitar tudo o que a vida me ofereceu.
Acredito que nada do que nos acontece é maior do que a nossa capacidade de superação,
por isso sigo em frente, sem me perguntar o porquê de estar vivendo isso tudo.
Segundo o darwinismo, a espécie que
sobrevive não é necessariamente a mais forte, mas aquela que tem maiores condições
de adaptação. E eu tenho me esforçado bastante
para me adaptar a tantas mudanças...
Conseguir escrever esse texto e
postar no meu blog, o primeiro em seis meses, já é uma forma tímida de retomar
algumas coisas da minha vida, e isso me alegra profundamente.