sábado, 27 de outubro de 2018

Quando a calçada é a sua morada...


Descrição da foto:# para todos verem: rosto de Audy e Ton sorridentes em uma lanchonete. Entre eles a mão da Audy  segura uma flor de papel branca feita com guardanapo pelo Ton.

Passei uma noite inteira nas ruas de Campinas conversando com pessoas que moram nas ruas. Projeto ENTREGA! 
Muito mais do que entregar alimentos, roupas e cobertores, é entregar AMOR E CARINHO para quem tem a calçada como morada. Ao longo dos anos já participei de inúmeras ações para ajudar pessoas carentes com câncer, HIV, hidrocefalia, fiz muitos trabalhos voluntários em favelas, orfanatos, casas abrigo, hospitais, creches, asilos... mas nunca tinha virado a noite numa calçada ouvindo histórias, ganhando abraços e sorrisos de pessoas que na calada da madrugada deixam de ser invisíveis para serem acordadas e receberem afeto.
O convite veio do meu amigo Ton Oliver que há muito tempo participa do Projeto ENTREGA e sempre escreve posts no facebook sobre suas vivências.
Ton é psicólogo, um rapaz muito humano, inteligente, agradável e cego. Nos conhecemos há quase duas décadas, perdemos contato por algum tempo e felizmente nos reencontramos. 
Ao aceitar o convite, falei para o Ton que fazia questão que toda a logística da noite fosse dele, uma vez que ele iria me guiar desde a saída de São Paulo até o nosso retorno na manhã seguinte.
Então logo o Ton me disse que iríamos para Campinas de carona compartilhada pelo aplicativo Blablacar. Eu não conhecia o aplicativo e nunca tinha viajado desta forma, mas é claro que aceitei de imediato. O nosso ponto de encontro foi na estação do Metrô Conceição às 19h30 da sexta-feira 28 de setembro de 2018. Como cheguei bem mais cedo, mandei uma mensagem para o Ton que me enviou as coordenadas da lanchonete onde ele estava e fui encontra-lo. Enquanto tomávamos um café, o Ton fez uma flor com o guardanapo e me presenteou.
Em seguida fomos para o nosso ponto de encontro, em frente a um chafariz, onde o motorista Caio iria nos encontrar. Esperamos alguns minutos e logo o Caio chegou. No carro havia mais dois rapazes, Thiago e Otávio, muito simpáticos, e, assim como o Caio, também eram estudantes da UNICAMP. O aplicativo blablacar não visa lucro e sim ajuda de custos da viagem. Então cada passageiro pagou R$20,00 pela “carona” até as proximidades da UNICAMP. Uma viagem tranquila e animada, como se todos já se conhecessem.
Chegando em Campinas eu e o Ton pegamos um UBER até o estacionamento do Bosque dos Jequitibás. Já passava das 22h00 quando chegamos lá e, para a minha surpresa, havia muitos carros e mais de 80 pessoas, a grande maioria eram moças e rapazes universitários. Todos sorridentes e visivelmente felizes por estarem ali.
As doações estavam separadas por produtos e para montar 220 kits não demoramos nem 10 minutos. No início da fila pegávamos uma sacola plástica e seguíamos com ela aberta enquanto as outras pessoas colocavam dentro: papel higiênico, garrafa de água, sabonete, preservativo, biscoitos doce e salgado, pipoca, sanduíche, creme dental e escova e um par de meias. No final dávamos um nó na sacola, colocávamos no chão e voltávamos para fila para pegar mais uma sacola e encher.
Recebemos informações sobre o propósito do Projeto ENTREGA e orientações para não fotografar as pessoas e ficarmos sempre juntos em cada parada. O grande grupo foi dividido em três rotas, cada rota tinha cerca de 10 carros que saíram em comboios. Alguns carros transportavam também cobertores, roupas feminina e masculina e calçados. 
Eu estava na rota 1 com o Ton. Em cada parada, ficávamos cerca de 40 minutos conversando com as pessoas que moram nas calçadas. Muitas delas vivem há anos nestas condições e já são conhecidos dos voluntários do ENTREGA. Meu amigo Ton é muito querido pelas pessoas que moram nas ruas, e em todos os lugares que paramos ele era festejado e abraçado pelas pessoas. Ao ser apresentada como amiga do Ton, eu já recebia um sorriso largo, às vezes um abraço, outras um aperto de mão.
Nesta noite que passei sentada em calçadas mal cuidadas e pouco limpas, ouvi desabafos, confidências, vi pessoas sem esperança, gente sofrida, vi brotar lágrimas e sorrisos, vi a força de um senhor que vive há 14 anos nas ruas e ainda assim consegue expressar alegria, fiquei sabendo de romances, de pessoas que saíram da rua e de outras que foram embora deste mundo... mas também presencie cenas de amor verdadeiro, de ENTREGA total.
Em uma calçada, entre tantos moradores de rua estava Lucimar, a Lu, que ficou muito feliz com a nossa chegada. Ton e eu sentamos no chão, muito perto da Lu, que segurava apertado as nossas mãos. Ela tinha apenas um cobertor muito sujo e uma garrafa com um pouco de cachaça. Seus pés descalços com marcas profundas na pele calejada, suas roupas surradas e com um odor forte não conseguiam esconder os traços de uma linda mulher, por volta dos 40 anos, acredito, que se esforçava, entre lágrimas e soluços, para contar para o Ton que ela havia ficado cega de um olho e só lhe restava um pouco da visão do outro. Dizia em voz alta e trêmula: “ Ton, agora eu sou como você”. Neste momento meu amigo a abraçou demoradamente e, num gesto de carinho profundo acomodou a cabeça da Lu no seu colo e a acariciou.... além das palavras de conforto, havia um amor genuíno, uma vontade de ajudar que ia muito além do que os meus olhos podiam ver. 
Depois de algum tempo começamos a conversar sobre a família e os filhos da Lu... em meio a tantas memórias sugeri cantarmos uma música alegre, afinal cantar sempre alegra a alma. Juntos cantamos músicas do Raul Seixas e do Tim Maia que a Lu escolheu e logo esboçou um sorriso leve... as pessoas da nossa equipe deram para ela um par de chinelos novos, roupas íntimas e uma camiseta. Ficamos ali quase uma hora. No momento da despedida mais abraços e a certeza de que aquele encontro tinha sido marcado pelo aconchego e pela ternura.
E assim seguiram-se outros tantos encontros, conversas, entregas dos kits, das roupas, dos cobertores e muito carinho até quase o dia clarear. 
Por volta das 4h00 da manhã, todos os participantes das três rotas se encontraram em frente à Catedral Metropolitana de Campinas para finalizar as entregas. 
No início da manhã, eu e o Ton pegamos um ônibus para retornar. Chegamos em São Paulo por volta das 7h00. 
Apesar do cansaço, trouxe comigo vivências extraordinárias e a certeza de que em um abraço dois corações batem juntos no mesmo compasso.
Obrigada Ton por me apresentar tantas pessoas abraçáveis, como você diz!