domingo, 27 de fevereiro de 2011

Um pouco mais sobre mim

Nasci em Caçador  Santa Catarina, no dia 16 de dezembro de 1971 a 1h30 da manhã no Hospital Jonas Ramos. Minha mãe sentiu uma contração no início da madrugada e pediu para o meu pai chamar a enfermeira. Quando eles chegaram no quarto eu já tinha nascido. Acho que não foi propriamente um nascimento, simplesmente me joguei no mundo. Minha mãe conta que assim que o cordão umbilical foi cortado e eu levada para o berçário chorei, ou melhor, berrei durante duas horas consecutivas. Ela escutava do quarto o alvoroço que  provoquei no berçário acordando todos os outros bebês. Eu devia estar testando as minhas cordas vocais ou avisando o mundo que tinha acabado de chegar. Não me lembro de nada disso, mas confio na palavra da minha mãe.
O meu nome deveria ser Cláudia, mas como no dia anterior ao meu nascimento o meu pai havia discutido com um amigo dele que se chamava Cláudio, eu poderia ter qualquer nome, inclusive Audmara, desde que não fosse Cláudia. Este nome, nada comum, foi escolhido a partir de uma lista de nomes fornecida pelo hospital. Portanto, não é uma combinação dos nomes da minha mãe e do meu pai como muitos pensam. Minha mãe se chama Iolanda e o meu pai César. A vantagem de se ter um nome “exótico” é que o mesmo quase dispensa sobrenome. Nunca conheci outra pessoa com o mesmo nome que o meu ou sequer alguém que já tenha conhecido outra Audmara.  
 Passei os oito primeiros anos da minha vida vivendo em um vilarejo há cerda de 30 kilometros da cidade, e que se chama até hoje Km 30. Lá morava toda a minha família, meus avós, tios, primos e outras famílias que se conheciam e eram amigos. A maioria das famílias era de origem italiana, alemã e polonesa. Cresci ouvindo meus avós e a vizinhança falarem um dialeto italiano misturado com português. Nas nossas refeições era servido apenas comida italiana e bebia-se vinho que o meu avô Olivo produzia. Ele cultivava as videiras, colhia, prensava e fazia o vinho e também o vinagre que consumíamos. O vinho era armazenado em uma pipa enorme no porão de terra batida da casa dos meus avos. Na frente da pipa de madeira, um pouco acima da torneirinha ficava um pequeno copo de vidro para quem passasse por ali e quisesse “matar a sede” como dizia o meu avô. Na época do vinho doce, aquele período em que o vinho ainda está em processo de fermentação, eu adorava dar uma fugidinha até o porão e encher aquele copo com o vinho cuja espuma roxa era tão linda que eu bebia mais pela beleza da cor do que pelo vinho propriamente dito. Em algumas ocasiões o meu avô me pegava com a mão na torneirinha ou com o copo já na boca lambuzada de vinho. Ele não nunca brigava comigo, talvez porque eu era a única neta, além do meu irmão e de um primo. Na casa dos meus avós  maternos sempre desfrutei de enormes privilégios e cuidados. Quando o meu avô me flagrava perto da pipa a única coisa que ele fazia era gritar para a minha avó, muito bravo, dizendo que a menina ia ficar “tchuca”, ou seja, bêbada no italiano-português lá de casa. A partir daí começava aquelas típicas brigas de família italiana que parece que vai acabar em uma tragédia sanguinária. Felizmente a briga logo acabava porque minha avó Nadia, que era muito sábia, nada respondia para o meu avô. Só resmungava: “matucelo”, ou seja, louco. Minha avó, a pessoa mais amável que conheci na minha vida, me dizia que eu devia pedir para ela primeiro e só pegar o vinho da pipa quando ela estivesse junto comigo. Essa era a bronca que eu levava e é claro que logo esquecia e fazia tudo de novo... no dia seguinte a gritaria se repetia com mais intensidade ainda.
Durante a minha infância não havia energia elétrica no Km 30 e a geladeira da nossa casa era a gás. Eu tinha um castiçal azul escuro com uma vela fina e branca que a minha mãe sempre ascendia para eu ir para o meu quarto dormir. Eu, mesmo sendo muito pequena, andava pelo corredor escuro sem medo enquanto observava as sombras gigantescas dos objetos que a chama da vela projetava nas paredes. O meu quarto era o último do corredor e quase toda noite eu me descuidava e derrubava um pouco de cera quente derretida da vela na minha mão. Aquela cera líquida quase fervendo demorava uns segundos para se solidificar na pele fina dos meus dedos. Como doía cada uma daquelas gotas de cera que tanto me queimavam. O pior era esperar até a cera ficar branca e dura para arrancar da mão com força e se ferir ainda mais. Esses acidentes eram tão freqüentes que eu nem chorava cada vez que a cera castigava a minha pele.  
O meu avô Laurindo tinha uma televisão à bateria que chiava muito e a imagem era quase indecifrável. Era a única televisão do Km 30. Não me lembro de alguma vez ter conseguido assistir a um único programa naquela TV preta e branca, muito pequena e que minha avó a tratava como sendo a maior relíquia da casa. Mas a novidade não durou muito tempo porque logo a TV quebrou e nem mesmo depois de inúmeras tentativas de reparo ela voltou a funcionar. Só depois que me tornei adulta soube que como a minha avó passava horas assistindo televisão e o meu avô se sentia injustiçado pela falta de atenção, um dia ele decidiu cortar o cabo que ligava a TV a antena no alto da casa. Nunca ninguém descobriu que era esse o motivo da TV estar sempre fora do ar.    
Que felicidade a minha de não ter tido Televisão nos meus primeiros anos de vida. Tive uma infância livre, pude ser criança e tive a chance de inventar brincadeiras e brinquedos com o que encontrava na natureza.  
Na nossa casa escutávamos todos os dias as notícias no rádio a pilha que ficava em cima da geladeira a gás ao lado do pingüim gorducho de vidro. Tínhamos também uma vitrola à pilha, e os discos preferidos dos meus pais eram os do Teixeirinha & Mary Teresinha e Vicente Celestino.  Quando a vitrola estava ligada tínhamos que ter muito cuidado para caminhar pela casa. O assoalho era de madeira e qualquer movimento brusco nas tábuas do chão irregular fazia a agulha do toca disco vibrar e riscar o vinil.  Normalmente isso acontecia e lá vinha mais gritaria, desta vez dos meus pais  em coro. Eles ficavam horrorizados com a possibilidade de nós termos riscado suas preciosidades musicais. Nós saíamos correndo porta a fora e às vezes a minha mãe tentava fazer uso da vara de marmelo que ela guardava numa prateleira perto do fogão a lenha. A vara nunca sequer passou perto de nós porque eu e o meu irmão, todos os dias, quebrávamos cuidadosamente um pedacinho da vara. Assim quando a minha mãe precisava da vara o que tinha sobrado dela era muito pouco para nos alcançar. Ao lado da nossa casa passava um rio e em uma de suas margens tinha um pé de marmelo que nos dava frutos deliciosos além de varas que minha mãe adorava cortar e ter sempre a mão.
Na cozinha e na sala tínhamos lampião a gás que fazia muito barulho e esquentava bastante o ambiente. Eu gostava de ficar olhando para a chama azulada do lampião até os meus olhos lagrimejarem. Outras vezes ficava esperando algum inseto ser atraído pela luz e logo perecer no calor da sua curiosidade.    
Nós mudamos para Caçador quando eu tinha 8 anos e morei lá até completar os meus 16 anos. Estudei no tradicional Colégio Marista da cidade e conheci de perto o rigor de um sistema de ensino autoritário que ao invés de convidar o aluno a pensar e a debater o amedrontava e silenciava.
 No início de 1988 saí da casa dos meus pais para ir estudar em Curitiba. Fui morar com o meu único irmão, que é um pouco mais velho do que eu e que já estava estudando lá.
No ano seguinte, o meu irmão entrou na USP e viria estudar em São Paulo. Eu queria ficar em Curitiba, mas meus pais foram categóricos: você vai para São Paulo com o seu irmão ou volta para casa. Foi fácil escolher. Eu tinha 17 anos, não conhecia ninguém aqui e não tinha muita noção do que era a cidade de São Paulo. Quando cheguei na Rodoviária do Tietê, além do endereço do quarto de pensão que íamos morar, eu trazia comigo apenas um ursinho de pelúcia, uma mala de roupas e outras tantas de sonhos. Foram anos extremamente difíceis, batalhas gigantescas que tivemos que vencer para sobreviver, para não desistir do que acreditávamos e ter que voltar para casa. 
Eu sempre quis ser jornalista, prestei vestibular e passei para jornalismo. Decidi cursar Administração com habilitação em Comércio Exterior porque era mais fácil conseguir trabalho e a tão sonhada independência financeira.  Como a vida é feita de escolhas e temos que arcar com as conseqüências das mesmas, confesso que no meu caso paguei um preço bastante alto pela minha opção.  Eu detestava quase todas as matérias do meu curso e achava um verdadeiro horror aquelas aulas que deveriam me preparar para o mundo corporativo. Agora entendo que as aulas que me pareciam tão torturantes me deram base para a minha formação como profissional e alguns conceitos uso até hoje. Comecei a trabalhar durante o dia no mesmo ano que entrei na Universidade. Como quase todos os meus colegas de classe, chegava exausta para as aulas que terminavam muito tarde da noite. Apesar de não gostar do meu curso eu estudava bastante, sempre fui boa aluna. Na verdade acho que o que eu mais queria era estar livre daquilo tudo o mais rápido possível. Com 21 anos me formei pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Só participei da colação de grau oficial, afinal não tinha muito para comemorar. 
 Trabalhei em algumas empresas na área de Comércio Exterior e aos 23 anos tinha economizado o suficiente para comprar o meu primeiro carro.
Nesta época muitos dos meus amigos já tinham viajado para o exterior, outros tinham feito intercambio e já falavam inglês. Eu nunca tinha saído do Brasil, não falava inglês e sonhava em viver na Europa, conhecer aqueles lugares que eu tinha visto tantas vezes nos livros. Pensava que trabalhando com Comércio Exterior poderia ter esta oportunidade no futuro. É evidente que poderia ter conseguido uma transferência para o exterior se tivesse sido capaz de suportar a rotina dos meus afazeres nas empresas multinacionais que trabalhei. Com freqüência eu me demitia dos meus empregos para total espanto de chefes que nunca entendiam nada quando eu expunha as minhas razões para mudar, me libertar daquilo que tanto me sufocava.  A cada novo emprego eu tinha mais certeza de que não iria agüentar por muito tempo aquele “jeito de ganhar a vida”. A rigidez das relações entre as pessoas e os valores pregados nas organizações que trabalhei estavam sempre em conflito com os meus princípios e o que eu queria para a minha vida.
 Então resolvi tomar uma decisão drástica que iria mudar a minha vida para sempre. Contra a vontade da minha família e obviamente sem nenhum apoio financeiro dos meus pais resolvi ir embora para Londres. Verifiquei o quanto eu tinha na minha poupança, fiz algumas pesquisas sobre cursos no Exterior e tomei a sábia decisão de primeiro aprender a falar inglês e depois me preocupar em comprar um carro o que poderia fazer em qualquer momento da minha vida.
Em agosto de 1996 embarquei sozinha para a Inglaterra. Fui morar em Londres e correr atrás dos meus sonhos. Uma vez mais eu me via com uma pequena mala partindo para o desconhecido como quem vai sem saber ou certo quando volta, se volta e em que condições vai voltar. Lembro que quando fiz o meu check-in  no aeroporto de Guarulhos a minha bagagem toda para ir viver em outro continente pesou apenas 12 kilos. Para mim o que mais pesava eram os meus sonhos e a enorme vontade de vencer que eu levava comigo. Eu só tinha tido algumas aulas de inglês na Universidade e nunca tinha feito nenhum curso aqui no Brasil, mas acreditava que mesmo assim iria conseguir me virar na Inglaterra. E consegui. No terceiro dia que estava em Londres já tinha conseguido um emprego e fui sozinha abrir uma conta bancária num banco inglês com a ajuda do meu dicionário de bolso português-inglês que tinha comprado aqui no Brasil.
Nas minhas aulas de inglês aprendi um dia um provérbio que sempre uso: “ where there is a will, there is always a way”. Em português, literalmente, poderia ser: “Quando existe vontade, há sempre um caminho”. 
Os anos que vivi em Londres, sem dúvida, merecem um capítulo a parte.  Aprendi muito e dei o primeiro passo para me tornar a cidadã do mundo que eu sempre quis ser. Na verdade eu não queria ir para a Inglaterra, queria estudar francês na Sorbonne em Paris, mas de novo tive que optar pelo que me parecia ser mais sensato naquele momento.   
Só voltei para o Brasil em dezembro de 1998 após ter obtido a certificação de proficiência da língua inglesa para estrangeiros concedida pela Universidade de Cambridge. 
Logo comecei a trabalhar como professora de inglês para executivos em uma renomada escola de línguas americana e também dava aula particular em empresas e na minha casa.     
Foram mais de sete mil aulas ministradas durante os cinco anos que trabalhei na escola. Neste período além dos cursos de Teatro que me qualificaram para trabalhar profissionalmente como atriz fiz  também Pós-Gradução –Lato Sensu em Língua Portuguesa na PUC-SP.  Após terminar este curso tive certeza de que me manterei afastada por muitos anos do mundo acadêmico brasileiro.
Desde que resolvi parar de dar aulas, há quase sete anos, trabalho em um Consulado.

 Na parede da minha sala tenho escrito um poema com o qual me identifico bastante:
“ Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe o quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Ricardo Reis   

4 comentários:

  1. Audy,
    Gostei muito desta história e das memórias. Grande sensibilidade!
    Beijos,
    Luciane

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  2. Audy,

    Que gostoso lembrar da infância, dos detalhes...adorei ler essa história sua. Me fez lembrar muita coisa da minha infância italiana também! rs
    Com relação ao texto da foto, nossa, nada é por acaso mesmo e isso demonstra que você tem talento para fotografia, vá em frente!
    Muito bom o blog, vou indicar. Bjs. Vâ

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  3. Nossa, muito obrigado por nos ter dado a oportunidade de viajar um pouco pela tua vida! A infancia, o vinho, a viagem, os sonhos, o poema... Adorei!
    O seu relato é mais uma grande prova de que o olhar transforma o mundo...
    Beijos

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  4. Oi querida! Sabe que serei sempre leitora assídua dos teus "causos". Apesar de já termos passados 8 horas juntas na estrada, voltando da praia, falando pelos cotovelos, esses detalhes da sua infância eu não conhecia. Gostei muito de conhecer.
    Adorei a idéia do blog. Acredito que ele será o começo de uma nova fase na sua vida.
    Beijo enorme.
    PS. Adorei a história da maternidade. Já nasceu causando. rsrs

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